Fazia tanto tempo que até me assustei, demorei a conseguir apreciar a ocasião, relaxar e almoçar com a mínima dignidade que o momento exige.
Sim, porque se existe algo que me é sagrado este é, sem sombra de dúvidas, a hora de sentar-me à mesa. Esse momento religioso, mágico e solene em que somos agraciados com um dos maiores prazeres que um homem pode ter: o simples ato de comer. Somos o único ser vivente que se diferencia dos demais exatamente por esse dom concedido por Deus, que é o de poder perceber, distinguir e apreciar os alimentos. Os demais animais pastam, o homem come, apenas o verdadeiro homem de "esprit" sabe comer.
Alguns argumentarão que não, que muitos não têm tal transcendência ao ingerir o que quer que seja e que comer é um ato corriqueiro e necessário como tantos outros. A estes, só me resta lamentar pela sua natureza bruta e caráter pouco cultivado, pecado capital tão grande quanto aqueles que não valoram outro gênero de primeira necessidade e sem o qual a vida seria insuportável, a música. Igualmente existe uma diferença entre ouvir e escutar, mas, sentemo-nos à mesa.
Entrei no restaurante, desses comuns, ordinários e que infestam as ruas do Centro do Rio, um típico restaurante a kilo desprovido de qualquer graça. Resignado, como ultimamente tem sido o caso, e mais inclinado em engolir, a comida e o ambiente, e não a me alimentar.
Me deprime muitíssimo constatar a decadência econômica e, principalmente, cultural da minha cidade, onde o culto ao mau gosto e a tudo que seja evidentemente vulgar grassa e parece crescer como erva daninha em meio a relva.
E um dos maiores flagelos que poderia ter me atingido efetivamente me atingiu, desde que a essas praias retornei (sim, sim, me repito), e constatei horrorizado na carne: as mesas dos restaurantes agora são compartidas entre estranhos!
Chamem-me do que quiserem, de esnobe, fresco, elitista, gritem, atirem-me tomates até se assim os apraz! Nada, absolutamente nada, me demoverá da minha repulsa em ter que dividir horário tão nobre e momento tão íntimo e particular com essa choldra ignóbil.
E olha que eu não suporto comer sozinho, agora, isso sim, que me façam companhia aqueles por mim eleitos para que o deleite seja completo. Se é verdade que a mesa foi feita para congregar e compartir, não se deve descuidar na escolha dos comensais, uma má eleição pode verdadeiramente arruinar o banquete mais frugal, e arruina.
Sacrilégio senhores, isso é o que é, sacrilégio ser perturbado justamente quando se está ali, saboreando a textura das verduras, o ponto de sal da carne, vamos, até mesmo as borbulhas de uma prosaica água mineral com gás. Est modus in rebus? Atiram-se sem pedir licença de encontro ao assento e comem à semelhança e modos de uma besta.
E os comentários? Cada vez mais desavergonhados e sem cerimônia, a piada fácil, o gargalhar grosseiro, as intimidades desveladas sem nenhum pudor ou charme, tudo isso ali, do seu lado, e o que deveria ser prazeroso se converte em suplício, a comida é enfiada goela abaixo com o garfo fazendo as vestes de uma pá de trator e a ânsia pelo momento da fuga é inevitável.
Hoje, porém, sentei-me temendo o pior e nada aconteceu. Detive-me até mesmo por alguns segundos, sobressaltado para repensar a minha postura e adequá-la ao momento seguinte e nada, ninguém se sentou na minha mesa. Era meu, só meu aquele tampo de mármore, um quadrado que, por aproximadamente 25 minutos me devolveu o gozo e o prazer de poder almoçar em paz. E assim o fiz.
Para deglutir e pensar: