quinta-feira, 19 de março de 2009

A Onça

Chasse au Tigre (Caça à Onça) – Johann Moritz Rugendas – Da obra “Voyage Pittoresque au Brésil


“O arco e a flecha são as armas principais dos índios. São muito mais compridos do que as de outros selvagens, embora a maior parte dos índios da América Meridional use também arcos e flechas muito compridos. A lança e o laço se encontram apenas em algumas tribos que, depois do descobrimento, adotaram o cavalo para combater. E somente nessas tribos foram os arcos e as flechas encurtados. O arco dos brasileiros tem muitas vezes cinco, seis e mesmo sete pés de cumprimento...Há três espécies de flecha. Uma de ponta larga, feita em geral de bambu tangaraçu; é dura e muito aguçada. Para aumentar ainda a força da penetração, a ponta é encerada e a taquara, também encerada ao fogo, torna-se tão dura quanto o chifre. Como na taquara a ponta é oca, os ferimentos que ela produz sangram fortemente. Por isso é empregada, principalmente, na guerra e na caça de grandes animais.”

Outro dia despertei sobressaltado, suando frio e com um nó na garganta, nos meus sonhos era atacado por uma onça. Não era uma onça qualquer, era um felino de considerável porte, meio mulher meio onça e que me perseguia sorrateiramente pelo meio da mata, como naquela lenda indígena da qual uma vez ouvi falar.

Essa lenda amazônica diz respeito a uma fera, cujo nome eu não me lembro, que é uma mistura de homem e onça e dizem que aparece de noite, como um caapora ou curupira, protegendo a floresta daqueles que a depredam e castigando-os sem dó nem piedade.

Deus sabe que nunca liguei muito para felinos de qualquer espécie, os gatos especialmente sempre me incomodaram com o seu elevado senso de independência, que faz com que cada um de seus gestos em nossa direção pareça a migalha de um aristocrata ofertada à plebe.

Além de não serem servis como os cães, o seu comportamento é uma miríade de sutilezas que requer aguçada disposição para interpretá-las. Como se não bastasse, mesmo quando recebem carinho, daqueles que se iludem crendo ser seus donos, jamais perdem a sua altivez e a fleuma.

Mas, no meu sonho, esse felino era diferente, possuía um estranho magnetismo e sedução que fazia com que, por mais que me embrenhasse na mata em fuga, tivesse a nítida sensação de que todos os caminhos me levavam até ele.


Me sentia uma espécie de Antonio Proaño às avessas, a personagem principal da obra do escritor chileno Luis Sepúlveda – O velho que lia romances de amor.

No livro, Antonio é um homem velho e humilde, morador de El Idilio (um povoado perdido na região amazônica), profundo conhecedor da floresta, local onde se refugiou e aprendeu a sobreviver após a morte da sua esposa e que passa os seus dias a ler tristes romances de amor. Um certo dia começam a aparecer pessoas e animais mortos, atacados possivelmente por um predador, uma onça.

O povoado, entretanto, acredita que os responsáveis são os Shuar, tibo indígena que outrora havia ensinado a Antonio o gosto pela liberdade e o respeito pelos animais. E é Antonio quem, sozinho, após uma expedição mal conduzida pelo líder do povoado, esclarece o mistério, salvando a reputação da tribo e conseguindo abater o felino, embora lamentando-se da desigual luta que opôs um animal a um homem fortemente armado.

Digo às avessas porque aqui, por mais amuniciado que eu pudesse estar, sabia de antemão quem sairia vencedor dessa estória e quem seria abatido, eu não tinha a menor chance.

A cena que me despertara, quase me fazendo cair por duas vezes da cama, era a seguinte: Me via correndo de noite, na beira de um igarapé, sem ter como atravessá-lo e sentindo a real presença do predador às minhas costas. Ele no entanto não se aproximava, se detinha pacientemente, como se estivesse estudando meus movimentos, me analisando antes de dar o primeiro bote. O tempo passava e nada, a angústia era insuportável.

Mas, desarmado e sem ter como atravessar o rio, não me restava outra opção a não ser a de aguardar e esperar, o que fazer? Do meu lado uma imponente Sumaúma se erguia a 40 metros do solo. Lembrei-me que os índios utilizavam as reentrâncias das suas imensas raízes, verdadeiras “cabines”, como abrigo para dormir; reenconstando-se nestas e cobrindo-se com folhas de palmeira para não serem pegos de surpresa por predadores noturnos.

E foi aí, enquanto tentava fazer exatamente isso, que senti o impacto de um corpo contra o meu, como se houvera sido atropelado por um trem, e fui atirado a metros de distância. Ainda zonzo, sacudi a cabeça e tentei recobrar a consciência, as árvores dançavam na minha frente e no meio delas, dois faróis me observavam intensamente.

Nunca havia visto algo de tanta beleza, estava prestes a ser devorado e o medo já não existia, me apercebia apreciando os contornos do felino parado, ali, bem na minha frente e não lhe podia resistir.

A onça me fitava e ronronava baixinho, não era um rugido, um latido ou um urro, não era um balido, nem certamente um grito, era um canto melódico e apaixonado de um sentimento e de uma expressão profundos. Vagarosamente, veio se chegando e senti suas garras imobilizarem meu corpo, sua língua a deslizar pela parte interna das minhas pernas, subindo pelo ventre até parar e me encarar de frente. Nos meus delírios mais frenéticos, me sentia o próprio Batman na clássica cena em que a mulher gato seduz o homem morcego.

A onça se fazia meio gata, meio mulher, e possuía uma expressão enigmática. Seus olhos se prenderam aos meus por um segundo, e então ela continuou a me lamber vagarosamente, dessa vez indo até a minha mão e chupando meus dedos como se fosse um picolé.

A acaricio por alguns segundos, ela mordisca levemente o meu pulso. Uma onda de calor me invade o peito, e então, sem nenhum aviso ela dá meia volta e se vai, como se a medida de carinho já tivesse sido suficiente.

Raio de gata temperamental! - Exclamei, pulando da cama como se o mundo se acabasse e decepcionado por estar sozinho no quarto. Se aquilo era um pesadelo, por favor, quero sempre sofrer assim.

Alguns dizem que os sonhos nos trazem importantes mensagens e que devemos estar atentos a estes sinais e a influência que os mesmos têm em nossas vidas. Certamente há muito que aprender com certos felinos: ser intenso, mas sem abdicar da suavidade; mostrar-se sensual, mantendo certa reserva; comportar-se com altivez, mas desprezando os pedantismos. Mas e aí, será que é só isso?

Como me sinto incapaz de realizar esta tarefa sozinho e chegar às minhas próprias conclusões, já marquei hora hoje com a minha psicoterapeuta que, certamente, terá importantes subsídios a dar para a elucidação desse misterioso quebra-cabeças e me ajudará a livrar-me da minha dificuldade em lidar com certos felinos, que, desde então, parece só aumentar.

6 comentários:

Vee disse...

Aiiiiiii!

Assim que eu parar com essa risaiada tupiniquim (é um termo sãocarlense, tá?)eu volto pra comentar descentemente!


Bjs!

Nicolau disse...

Rapaz, depois sou eu que estou empolgado.

Vee disse...

E não é que eu voltei?

Mas eu sempre caio na risada com esta imagem e esqueço o que de fato ia dizer!

Eu não vou desistir, não vou!


Risos

missbutcher disse...

Cura: doses homeopáticas de Panqueca, a gata mais linda, mais Garfield e mais temperamental do Rio.
;-)
Acho que não é exatamente isso que estás procurando, mas pode servir.
Bjs

missbutcher disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
bloke in blue disse...

Queridos amigos,

Acabo de voltar do almoço, após comer lautamente passei, como de costume, na Livraria da Travessa para namorar a vitrine e eis que me deparo com o seguinte título, a brilhar em meio a tantos outros: Meu Destino É Ser Onça.

Seria o sinal pelo qual tanto ansiava? Como não acredito em coincidências, entrei entre sorrisos de nervosismo e imediatamente adquiri um exemplar.

Observem o seguinte texto, que se encontra na orelha do livro.

Após estudar os fragmentos de registros feitos pelo frade André Thevet sobre a cultura indígena durante a ocupação da Baía de Guanabara, em 1550, e cotejá-los com as demais fontes dos séculos XVI e XVII, o autor reconstituiu o que teria sido o texto original de uma narrativa mitológica da tribo tamoio (os tupinambá do Rio de Janeiro).

Alberto Mussa montou uma espécie de quebra-cabeça e reconstituiu o que teria sido o texto original de uma grande narrativa mitológica dos tupinambá - que abarca a história completa do universo, de suas obscuras origens ao iminente cataclismo final. O tema central [...] é a busca da terra-sem-mal. [...] a complexidade metafísica tupi aponta para uma surpreendente conclusão: a de que o rito antropofágico era, para os índios, a principal aquisição da cultura, capaz de transformar em Bem o Mal inevitável inerente à natureza. [...] no jogo canibal, cada grupo depende totalmente de seus inimigos, para atingir uma vida de prazer e alegria".

Estarei perto de decifrar este inquietante enigma que me aflige? Acho que estou no caminho certo e dito isto, me calo.

 

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